domingo, junho 17, 2007

Sou resistente (e um pouco desconfiado) em relação aos livros ou autores mainstream, digamos assim, como "Portugal, o medo de existir", de José Gil, por exemplo ou Gonçalo M. Tavares. Provavelmente até é mania/ cisma minha. (Não tem nada que ver com inveja: é talvez um preconceito, uma aversão a tudo o que soe a espírito de rebanho.) Não significa que não vá verificar, mais tarde, com a minha própria cabeça se a aclamação é justa ou desmedida.

Adquiri o romance "Jerusalém", do referido escritor. Estou nas primeiras páginas e vale mesmo a pena, sem dúvida. Está muito bem escrito! Estarei, como Gonçalo merece, mais atento a esta revelação da língua portuguesa. Quando estiver mais adiantado deixarei provavelmente post sobre o livro, aqui ou no Paris, Texas (ou nos dois). Para já fiquem com este excerto, para vos aguçar o apetite:

Os pés distantes dos sapatos. Era evidente que os sapatos rasos, à homem, que Mylia usava, obedeciam ao movimento dos pés. Ossos e músculos têm vontade, o material de que são feitos os sapatos não. O material de que são feitos os sapatos é treinado para obedecer, sobre isso não tinha dúvidas. Obedeçam sapatos, murmurou Mylia, com uma perversão ingénua. Como as substâncias se separavam logo à partida entre as que avançavam com a vontade própria e as que esperavam com obediência estática (e nisso dividiam-se como alguns homens)! Os sapatos eram a obediência pura, a escravidão mesquinha, enojavam-lhe naquele momento; a sabujice destes materiais em relação ao homem. Nenhum cão é tão sabujo como estas substâncias.
JERUSALÉM, Gonçalo M. Tavares

André Martins