segunda-feira, abril 23, 2007


MADRUGADA

Na madrugada do 25 de Abril de 1974, quando o MFA prepara o derrube do Governo, o director da PIDE transmite aos seus funcionários uma interessante nota de serviço. Segundo esta, os agentes da polícia política deverão continuar "a trabalhar como habitualmente", abstendo-se de qualquer acção hostil às Forças Armadas. Podemos hoje entender que a PIDE, cuja colaboração era íntima com a CIA ou com os serviços secretos franceses, estava a par dos projectos do MFA. É provável que o golpe militar tenha sido organizado com a concordância, ou a tolerância, pelo menos, dos serviços secretos ocidentais, em particular com os norte-americanos.
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O regime português afundava-se desde havia treze anos numa longa guerra nas colónias africanas, parecendo incapaz de se reformar para corresponder às exigências duma economia moderna. As despesas militares representavam encargos esmagadores para o conjunto da economia, penalizando a necessária modernização do Estado, e a ameaçade quatro longos anos de serviço militar levava muitos jovens trabalhadores a emigrar, fugindo da pobreza e da farda. Por outro lado, apesar da forte repressão policial as lutas operárias não haviam diminuido desde meados dos anos 60 e os sectores capitalistas modernos aspiravam abertamente a uma transição democrática, a um regime parlamentar legitimado pelo voto. Aos olhos desta fracção das classes dominantes, o jogo sindical deveria poder canalizar para a negociação os movimentos reivindicativos, evitando a sua constante politização. Era uma evolução tanto mais necessária quanto o peso do capital multinacional se tornara predominante na economia portuguesa. A guerra já não podia ser ganha militarmente; para a população, a guerra era um factor de imobilismo. Impunha-se virar a página.
Mas, uma vez desencadeado o golpe, a sequência dos acontecimentos não se desenrolou como previsto. A população de Lisboa e do Porto vem para a rua em massa, desafiando as ordens militares que dizem às pessoas para ficarem em casa a ouvir a rádio e a assistir aos acontecimentos como telespectadores. (...) A amplitude desta participação popular, a energia e a dinâmica dela decorrentes, não tinham sido prevista pelos conspiradores agaloados, para quem a resignação criada por quase cinquenta anos de regime autoritário constituía um seguro de vida.
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Depois disso, vai ser necessário um golpe militar às avessas, para permitir que as forças políticas burguesas fiquem de novo senhoras da situação e levem a cabo a reforma do Estado, em conformidade com os interesses do capitalismo privado.
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As utopias, os desejos, a generosidade e o imaginário colectivo desse tempo não podem evidentemente ser reduzidos a uma miserável opção entre o pior e o menos mau de dois males. Naquele momento, a história estava cheia duma variedade de possíveis, de probabilidades e projectos. (...) Vivia-se aquilo que a pintora Vieira da Silva soube exprimir quando disse: "a poesia está na rua".

Crónicas Portuguesas, Charles Reeve (Trad. de Júlio Henriques), Fenda, 2001, pp.9-11