terça-feira, dezembro 19, 2006

PODER E IDENTIDADE EM UPSTAIRS DOWNSTAIRS (1º Episódio, Esboço)

Faz 2 meses que comprei a primeira parte da série britânica Upstairs Downstairs (intitulada em português A Família Bellamy), produzida, em 1971, pela Granada, para a televisão. Tinha visto partes na RtpMemória e fiquei muito curioso. Recentemente a FNAC colocou a série ao preço da chuva e eu não resisti a comprar a segunda parte.

O microcosmos duma família aristocrática britânica dos começos do século XX, é o pretexto para uma análise contundente das diferentes formas de poder na sociedade em geral (Mr. Bellamy, o patrão, é membro do parlamento, pelos torys).

O primeiro episódio (da primeira série), On Trial (1) descreve a recepção de Sarah, a nova criada, na família. A cena da entrada física da criada com um picado e contrapicado relativos ao ponto de vista do mordomo, Mr. Hudson, desde a entrada principal do edifício e o do olhar da criada a partir das escadas que ligam a rua à porta. Sem lhe dirigir a palavra, Mr. Hudson indica, com um aceno de cabeça, a porta dos fundos. Aí, ela vai apresentar-se como pretendente à vaga de criada de sala, quando, aquela que já ocupa esse lugar, Rose, que a recebe, informa-a de que só há vaga para ajudante de criada de sala. Nas conversas trocadas entre os membros da criadagem, acusam-na de não ter maneiras ao querer entrar pela porta principal. Todos eles, por malvadez, à excepção duma criada, consideram a estranha inapta ao serviço, mas se os patrões a contratarem o dever dos subordinados é aceitarem a sua decisão. Tal como a patroa, também a cozinheira exige outro tratamento, proibindo-a de a tratar apenas pela função que ocupa na casa: a cozinheira tem um nome, Mrs. Bridges.

O elegante ambiente doméstico é uma ironia do que verdadeiramente se passa sob a superfície: as relações de poder entre os habitantes da casa. Podemos observar como esse poder é exercido quer entre os Bellamy e os criados quer, mais interessante ainda, como ele se vai jogando entre os próprios subordinados, multiplicando-se em cadeia, por imitação.

Mas o poder também se encontra, à sua maneira, do lado de Sarah. De facto, o seu maior poder é o da imaginação, que a leva a mentir sobre a sua identidade, apenas por uma questão de sobrevivência. A recém-chegada serve-se igualmente do poder do medo, dizendo-se filha duma cigana, de quem herdou o dom de ler as mãos, da vidência e de lançar maldições.

Ao apresentar-se à sua patroa, que a obriga a tratar por Milady, Sarah usa uma carta de recomendação falsa, condimentada com uma história inventada por ela mesma, dizendo-se meia francesa, tendo regressado ao Reino Unido após a doença da sua mãe. Mrs. Bellamy augura a sua recuperação já que ela precisa de se concentrar no novo trabalho. A humilhação vai mais longe quando a patroa decide rebaptizá-la com outro nome, que soa mais a britânico, substituindo Clemence Dumas por Sarah, considerando o anterior inapropriado. Mas Clemence é um pseudónimo, inventado pela própria, de que nunca saberemos o verdadeiro nome. Clemence ou Sarah é uma mulher à deriva, de origens miseráveis, a filha mais velha que teve que cuidar de muitos irmãos, pretendendo esquecer e ocultar as suas origens.

O jantar é como que a prova iniciática em que a neófita ficará ciente do seu lugar na hierarquia da casa: o mordomo, Mr.Hudson, e a cozinheira, Mrs. Bridges, sentados em ambos os topos da mesa, comandam os destinos da criadagem. Depois duma curta oração, em que o mordomo agradece a Deus pela refeição e pela posição que os presentes ocupam na escala social, por vontade Dele, Sarah lança-se furiosamente ao borrego, de que se queixa o cocheiro. Quem dera a muitos ter uma refeição destas uma vez por semana, não é Sarah?, diz o mordomo. Mas a criada “ensurdeceu”. A fome era negra. Os seus colegas chamam a atenção para a sua falta de respeito, já que Mr. Hudson lhe dirigiu a palavra. Mas ela tem resposta imediata, como sempre, confessando que ainda não se habituou à sua nova identidade. O mordomo repete a pergunta. Da segunda vez, Sarah mostra como aprendeu bem a lição, ao reconhecer aquele que, dali em diante, se encarrega da sua vontade individual, respondendo, como se tratasse duma palavra-passe, a algo que nem sequer ouviu: Yes, Mr. Hudson. A cara do mordomo rejubila, tranquilo, percebendo que a ordem foi finalmente restabelecida.

A nova criada não esconde que gosta muito de histórias que a fazem esquecer a sua própria história. Ao descobrir que a cozinheira rouba galinhas da despensa dos patrões, para vendê-las em seguida, Sarah faz o mesmo, como em uma atitude de desafio e jogo. No julgamento caseiro, conduzido, como não podia deixar de ser por Mr. Hudson e Mrs. Bridges, chamam-na de vulgar, mentirosa e ladra, sendo condicionada a aceitar, em cada “sim” que profere, que é uma subordinada. Ameaçam em contar tudo aos patrões. O mordomo obriga-a a escrever 10 vezes o mandamento adequado à ocasião. Mas ela mostra-se incapaz de o fazer, pois é analfabeta. A esta revelação, o mordomo e a cozinheira decidem suspender, como um acto de falsa compaixão, a acusação perante os Bellamy.

Sarah é uma personagem de recorte romântico, com forte personalidade, e decide abandonar a casa, pois não suporta mais as humilhações de que tem sido alvo, a anulação da sua própria individualidade. Na despedida, Sarah diz a Rose, a colega com quem partilha a cama no sótao, que a criadagem se assemelha a uma trupe de fantasmas, vivendo em função dos patrões e dos seus caprichos. Rose previne-a da dificuldade em arranjar emprego, mas a outra confessa que não acalenta grandes ambições em relação ao trabalho, pois o seu mais profundo desejo é viver.
Mais tarde falarei no segundo episódio, também muito interessante.
A.M.
(1)- On Trial tem um significado ambíguo, pois tanto se pode traduzir por “à experiência” (seja da nova criada, seja do episódio piloto da série), como funcionar também para julgamento, o que acontece de facto nesse episódio, o julgamento da própria Sarah.