quinta-feira, agosto 31, 2006


Anti-terrorismo no Afeganistão e Guantanamo modo de abusar
(José Mário Silva, DN-Artes, 15/02/06)
Se a Berlinale é conhecida por ser um dos festivais de cinema mais abertamente políticos, a edição de 2006 está a confirmar de forma evidente essa "linha programática". Depois da desmontagem, em Syriana, dos mecanismos políticos, económicos e militares a que os EUA recorrem para controlar o petróleo do Médio Oriente e da exibição de Grbavica, um retrato pungente das feridas não saradas da guerra na Bósnia, ontem foi a vez de Michael Winterbottom e Mat Whitecross revelarem a face negra da luta anti-terrorista levada a cabo pela Administração Bush, com a cumplicidade de Blair e de outros líderes europeus, naquele que é o filme-sensação do festival The Road to Guantanamo, um docudrama poderoso em estreia mundial - a montagem definitiva terminou apenas há três dias - e que vai ser lançado ao mesmo tempo em vários suportes, dentro de um mês.
Para denunciar a desumanidade dos métodos usados pelo exército americano na sua base de Cuba, Winterbottom escolheu contar uma história verdadeira. A história de quatro amigos, muçulmanos britânicos de Tipton (Birmingham), que em Setembro de 2001 visitaram o Paquistão, para assistir ao casamento de um deles. Encorajados pelo imã de uma mesquita de Karachi, eles atravessaram a fronteira, com vista a ajudar alguns afegãos mais necessitados. E foi então que as coisas começaram a correr mal.
De Cabul, onde chegaram ao som das primeiras bombas, eles quiseram regressar ao Paquistão mas o autocarro levou-os para Kunduz, um dos últimos redutos dos talibãs. Quando a cidade se rendeu, Ruhel, Asif e Shafiq fugiram (o quarto, Monir, ficara para trás). Capturados pouco depois pela Aliança do Norte, foram entregues aos americanos em Kandahar e enviados, sem culpa formada, para a Baía de Guantanamo, onde conheceram os tormentos do Campo Raio-X e do Campo Delta, até ao dia, dois anos mais tarde, em que os serviços secretos britânicos conseguiram provar a sua inocência.
"Eu quis dar um rosto aos prisioneiros anónimos de Guantanamo", disse Winterbottom na conferência de imprensa, "narrando apenas factos concretos". É essa, de resto, a principal força deste filme notável. Ao cruzarem depoimentos de Ruhel, Asif e Shafiq com reconstituições e excertos de reportagens, num ritmo vivo, próximo do cinéma verité, os realizadores não precisam de apontar o dedo a ninguém. Na sua lógica absurda, são os tais "factos concretos" que falam por si mesmos, revelando os vários graus de paranóia e perfídia a que chegou a desesperada luta anti-terrorista de Bush e Rumsfeld.
Em 2003, Winterbottom ganhou o Urso de Ouro com In This World, um road-movie político sobre refugiados afegãos a caminho da Europa. Num momento em que mais de metade das obras a concurso este ano já foram exibidas - sem despertar, diga-se, um entusiasmo por aí além -, as reacções a The Road to Guantanamo, globalmente laudatórias, indiciam que o autor de 9 Songs é bem capaz de levar novamente para casa o prémio mais alto do festival.